O Livro

Prefácio

Nas maravilhosas trilhas sem trilhos do magnífico trem voador

Até pouco tempo atrás, a ideia de loucura no imaginário social estava sempre, ou quase sempre, vinculada a coisas negativas. Seja a periculosidade, irracionalidade, criminalidade, vício, drogas, seja a incapacidade, irresponsabilidade e questões dessa natureza. Com tamanho preconceito e discriminação, as pessoas consideradas loucas eram predominantemente sequestradas do meio social e deixadas morrer em hospícios, ou em cárceres e outras instituições totais (abrigos, albergues, asilos…) pelo país afora. No final dos anos 70 e início dos 80 do século passado, estima-se que existissem quase 100 mil pessoas recolhidas nessas instituições que Austregésilo Carrano, um jovem que passou por algumas delas e escreveu um dos clássicos de denúncia nessa área, denominava de “chiqueiros psiquiátricos”. O canto dos malditos, o livro escrito, foi depois transformado em filme por Laís Bodanzky (como observa Babilak Bah no presente livro, tornando-se um dos mais premiados filmes brasileiros aqui e no exterior), embora o livro fosse proibido pela Justiça do Paraná, e Carrano tivesse que indenizar os proprietários do hospício que o prendeu e torturou! Esse foi um fato decisivo para a morte prematura de Carrano.

Porém, além das milhares de pessoas recolhidas nas instituições psiquiátricas, que Franco Basaglia denominou de “instituições da violência”, ou que, por sorte ou azar, não eram internados, existiam os loucos que amargavam as demonstrações públicas de humilhação, galhofas e constrangimentos nas ruas. Nesse sentido, como brilhantemente destaca Babilak ao puxar na memória de sua infância em Bayeux e João Pessoa, são ilustrativas as lembranças de “Baladoida”, do anônimo filho do “seu Cícero”, em eterno cativeiro domiciliar, de Vassoura e João Rasga Rua. Logo, essas situações demonstram também que seria possível lidar com essas pessoas de forma diferente, como demonstrou a mãe do autor ao lidar com o filho do “seu” Cícero ou com a “querida Tia Júlia”.

Essas passagens oferecem um panorama do que estaria por vir, com o advento de um amplo movimento social que denunciaria os maus tratos, os descasos, as violências de toda a ordem contra as pessoas ditas loucas. Estou me referindo ao “Movimento Por Uma Sociedade sem Manicômios”, um dos maiores movimentos sociais contemporâneos não apenas no Brasil e do qual Babilak Bah é ativista e um exemplar construtor.

Uma questão fundamental desse movimento é o fato de não se restringir a uma luta por um modelo assistencial menos violento, mais “humano”, mais inclusivo. Trata-se de um processo de questionamento, ao mesmo tempo epistemológico, social e político, que demonstra como a psiquiatria errou desde o início ao compreender a loucura como um erro da razão, como uma alienação mental, como um fator de periculosidade e risco social. Portanto, não bastaria mudar as instituições de internação, que são consequências, mas que também estão na origem dessa forma de lidar com a loucura. O hospício, como nos ensinou Michel Foucault (tão bem abordado no presente livro), é o a priori da psiquiatria. O hospício, isto é, as práticas de sequestro, exclusão e internamento, fundam a psiquiatria que, por sua vez, legitima o hospício.

O lema “por uma sociedade sem manicômios” vislumbra uma comunidade não apenas sem a presença física dos hospícios, mas sem a prática da exclusão, da violência do isolamento, da discriminação, dos preconceitos. Os manicômios são os olhares, os conceitos, a ausência de reconhecimento, de cidadania, de direitos, de emancipação dos sujeitos. Mais que o mister de mudar o modelo assistencial, as instituições de exclusão, vigilância, controle e mortificação, está o princípio de estabelecer/inventar novas formas de relação social com a loucura. Para isto o movimento nos demonstrou, com evidências e práticas criativas e revolucionárias, que é possível construir outras noções e conceitos, outros costumes, outras formas de cuidado e participação dos sujeitos com diagnósticos psiquiátricos. E que a mudança nesses princípios e nessas formas de relação propiciou o renascimento de sujeitos amortecidos nas instituições ou esquecidos nos guetos sociais.

Eu, pessoalmente, conheci muitas pessoas que estavam internadas em manicômios por longos períodos e que não tinham perspectivas para a vida. Seus prontuários afirmavam que eram pacientes crônicos, e que suas doenças agravavam no dia a dia para um final de demência e perda total das possibilidades de gerir suas próprias vidas. Com o trabalho que desenvolvemos e que, inclusive, os envolveu como sujeitos e protagonistas e não como pacientes e objetos, suas vidas mudaram radicalmente.

Esse movimento foi capaz de demonstrar que era possível fechar os manicômios e substituí-los por espaços de sociabilidade e produção de subjetividades, por dispositivos de trocas entre os sujeitos e de criação de vida. Com essas inspirações e nessa linha de raciocínio, é que foram constituídos os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os Centros de Convivência, as Cooperativas Sociais, as residências assistidas e assim por diante. Porém, uma estratégia, ou um dispositivo, de preferência, cumpriu (e cumpre) um papel singular nessa história e que é a alma deste livro de Babilak Bah!

Eu me refiro à contribuição da arte-cultura nesse processo! Ora, se a questão central estaria na construção de novas concepções e relações sociais com a loucura, as intervenções de arte-cultura mereceriam um papel estratégico, pois não existe nada tão transformador da cultura quanto a própria linguagem artístico-cultural. As teses, os artigos, os livros, as conferências são importantíssimos e fundamentais na construção de um pensamento crítico sobre a psiquiatria, as instituições, os saberes e práticas sobre a loucura, mas nada fala tão diretamente à alma, ao núcleo duro das representações sociais, quanto as linguagens ou expressões artístico-culturais. Para além dos valores lúdicos e estéticos, a arte-cultura produzida por pessoas em situação de vulnerabilidade é uma ação política, um lugar de fala que nos faz ouvir, ver e entender como falamos, ouvimos e entendemos tais pessoas como sujeitos coletivos e transforma a nossa relação com eles. Por isso, essas produções são dispositivos estratégicos de transformação social.

Babilak Bah soube perceber, captar e construir esse caminho de forma brilhante e original. Primeiramente, em sua atuação em Centros de Convivência e, na sequência, com a participação e criação de muitas outras iniciativas, donde se destaca a banda musical Trem Tan Tan, o magnífico trem que voa em trilhos que ele mesmo inventou! Das muitas iniciativas artístico-culturais que existiram e ainda existem em decorrência do processo brasileiro de reforma psiquiátrica e que inclusive produziram uma autonomia em relação ao campo da saúde mental e atenção psicossocial, ou seja, produzindo uma agenda cultural própria, original, se apresentando em espaços culturais da cidade e para a cidade, o fabuloso Trem Tan Tan é uma das mais fortes e expressivas iniciativas que pudemos conhecer quando organizamos o projeto Loucos pela Diversidade, cujo maquinista condutor foi Gilberto Gil, o então Ministro da Cultura.

A importância da arte já era bem conhecida no campo da saúde mental e assistência psiquiátrica, desde Juliano Moreira e Hans Prinzhorn, passando por Osório César e Nise da Silveira, dentre muitos outros. Porém, o fato novo, construído no contexto da reforma psiquiátrica brasileira, é o de que, para além de possíveis efeitos que, na falta de uma definição melhor, passou-se a denominar de “terapêuticos”, as atividades de arte-cultura são produtoras, isto sim, de cidadania, de formas de subjetividades, de emancipação, de “reconhecimento” (no sentido proposto por Axel Honneth), de produção de sentidos, como prefere Babilak.

A complexa, instigante e envolvente missão de trabalhar juntos, coletivamente, de saber ouvir e falar, de trocar com outros sujeitos, de construir utopias e fantasias, mas também práticas coletivas, tornam as expressões artístico-culturais um dispositivo magnífico,um disparador de coisas novas, de sujeitos novos. Por isso, cabe ressaltar,essas iniciativas devem merecer um importante destaque no processo de produção de um novo lugar social para a loucura. Muito mais do que mereceram, seja em reconhecimento e prestígio, seja em apoio administrativo, logístico e financeiro.

Este livro de Babilak Bah é um inestimável presente para todos nós, tanto aqueles que reconhecem a importância do trabalho com as expressões artístico-culturais quanto os que precisam e devem conhecê-las e, ainda, para aqueles que querem aprender, absorver os princípios do saber-fazer que o autor desenvolve com maestria e profunda sensibilidade.

A mudança, que tanto almejamos e começamos a construir com a reforma psiquiátrica, com novas relações entre os sujeitos, com novos olhares, narrativas, escutas e sentidos, perpassa este livro do começo ao fim. Esse aspecto o coloca em posição de destaque privilegiado na luta de resistência para encontrarmos mais e mais possibilidades de não permitir que tudo se acabe com a política atual de desmonte deste trabalho. Existem muitas formas de luta e de resistência; e todas elas estão presentes nas palavras e atos de Babilak Bah aqui relatados e analisados. Obrigado, Babilak!

Por uma sociedade sem manicômios; a luta continua!

Paulo Amarante

Posfácio

Cultura e saúde[1]

José Márcio Barros

Uma maneira fácil, objetiva e direta de definir a cultura é tomá-la como tudo aquilo que em nosso comportamento é resultado da vida em sociedade e do aprendizado que essa experiência constrói em cada um de nós. De outro modo: tudo que em nosso comportamento é expressão exclusiva do funcionamento de nosso corpo, podemos chamar de natureza humana. Porém, tudo aquilo que, mesmo parecendo ser natural, só se realiza em função do aprendizado formal ou não-formal, constitui a cultura.

Isso quer dizer que todos os sujeitos humanos possuem e fazem parte da cultura ou, se quiserem: ninguém está fora dela. A não ser que impedidos por deliberada ação desumanizadora intencionalmente criada por sujeitos, instituições e processos históricos, na maioria das vezes sustentadas pela perversa transformação das diferenças em desigualdades.

Com a ajuda da perspectiva antropológica, podemos pensar a cultura como um processo que realiza no ser humano seu potencial humano. De outra forma, é por meio da cultura que nos tornamos humanos, na medida em que construímos e partilhamos sentidos e assim significamos a nós mesmos e a tudo que nos envolve.

Contudo, essa mesma cultura que nos humaniza também desumaniza a nós e aos outros. Na medida em que, em nome de uma cultura no singular, hierarquizamos e subjugamos tudo aquilo que no plural nos remete às diferentes e surpreendentes formas de ser, existir, simbolizar e significar, estamos diante da mais tênue forma de violência.

O que quero dizer?

Que a cultura tanto nos torna humanos quanto nos aproxima das formas mais predatórias de existência. A cultura tanto nos une quanto nos separa. Tanto contribui para a paz social quanto alimenta enfrentamentos e guerras. A cultura é o longo aprendizado onde substituímos nossos instintos por comportamentos socialmente aprendidos. Daí poder dizer que não há nada de natural na cultura. Cultura é aprendizado, que tanto pode ser de intolerância, violência e discriminação daquilo que não encontra registro no meu próprio universo de valores e padrões; quanto deve ser dimensão central para a plena formação do sujeito, do desenvolvimento humano e da paz social.

Falamos de cultura, mas devemos sempre a entender no plural: culturas! Ao risco de estarmos sempre incluindo alguns e excluindo outros, a diversidade cultural é um imperativo semântico, político e simbólico. Uma deliberada intenção de transformar nossas diferenças culturais em possibilidades de interação e trocas. Ainda de forma mais radical: como convergência e centro de um projeto político, pedagógico e existencial de pluralismo e equidade: o direito de sermos iguais em nossas diferenças.

São duas as dimensões da intrínseca relação da cultura com a saúde. A primeira refere-se à maneira como mantemos ou recuperamos nossa condição humana no pleno exercício de nossas necessidades e capacidades identitárias, expressivas, simbólicas, criativas. A segunda, como aprendizado, proteção e promoção de nosso patrimônio mais surpreendentemente universal: a capacidade de, a partir de uma unidade biológica tão forte, produzirmos tantas e surpreendentes diferenças.

Cultura gera saúde como também a recupera, quando a instrumentalizamos, através de diferentes estratégias e linguagens, em importantes processos clínicos, sociais e educativos. Mas a cultura também gera saúde na medida em que se compromete com a diversidade e nos garante a plena e plural condição humana:

  • a diversidade cultural entendida como patrimônio comum da humanidade é fator determinante de desenvolvimento e criatividade;
  • os direitos humanos são a garantia para a diversidade cultural;
  • os direitos culturais são o marco político central desse processo;
  • o pluralismo cultural é a garantia da diversidade cultural;

É assim que olho para a trajetória desse paraibano que Minas Gerais teve a honra de acolher. Como uma oportunidade de compreender de forma contundente porque a cultura é condição para a saúde plena do ser humano. Percussionista, compositor, poeta, arte-educador, militante, Babilak Bah é uma existência inquieta que não cabe em poucas e fáceis legendas. Como ele mesmo se autodenomina, é um propositor e um artista do ruído que acredita em tudo e em todos que possuem a potência de novos sentidos.

Ler este livro é reconhecer com emoção sua capacidade de produzir intersemioses e diálogos interartes, que nos tornam mais humanos e que reinscrevem no campo da cidadania aqueles que por suas diferenças são insistentemente alijados e discriminados.

Viva a diversidade cultural!


[1] Texto escrito por José Márcio Barros especialmente para a publicação da presente obra.

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